Crônicas que inspiram - Fernando Sabino
Hoje
quero compartilhar outra paixão: Crônicas! Sabino é um mestre e sempre busquei
inspiração em suas leituras para produzi-las. Esta é uma das crônicas (dele) que eu mais gosto e uma das mais lindas
que já li!
A última crônica
A caminho de casa, entro num botequim da
Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o
momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o
dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se
para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A
mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se
afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom
encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo
com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma
pequena fatia triangular.
A
negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho
que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo
que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto
ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira
qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A
filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além
de mim.
São três
velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do
bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as
velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e
sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
"parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe
as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo
com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para
ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo
que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como
a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito,
a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido —
vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre
num sorriso.
Assim eu
quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
(Este
texto está no livro "A Companheira de Viagem", Editora do
Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.)
Imagino o sorriso da pequena e a felicidade de seu em proporcionar-lhe aquele momento.
ResponderExcluirLinda e emocionante.